quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Quando o romance começou ...

"Não podemos crer na total transparência dos seres, é necessário aceitar que os outros tenham segredos, regiões de solidão. A maior prova de amor será colocar-se a distância e não querer ai penetrar ", ela não sabia de quem eram essas palavras. A primeira vez que leu já gostou, mesmo que por intuição, com o passar dos anos ela interiorizou essas palavras. Sabia que ninguém é totalmente transparente, e nem deve ser. Existem porções que devem ser bem guardadas, e é isso que faz de nós, seres humanos, mistérios, como os poços no deserto de um certo príncipe.
Ela foi dormir intrigada e acordou com uma dúvida: será que nos apaixonamos por pessoas ou por símbolos? Será que em algum momento qualquer da vida, a pessoa é vista simplesmente como uma pessoa, em sua total nudez de gente, com fobias, mistérios, belezas, imperfeições, fome, dor, delícias, prazeres? Ou somos, eu, você, todos, vistos como símbolos?
Dona de casa de meia idade se apaixona por estudante poeta. Riu, era divertido rir das suas próprias idéias. Achava-se engraçada, os outros chamavam de ironia. Ela não era dona de casa, detestava serviços domésticos, estava longe da meia idade e não havia se apaixonado, mas gostou do enredo. Lembrava a Pobre Menina Rica do Vinicius de Moraes e Carlinhos Lyra. Sabia que não poderia continuar essa história, não era Primavera. Ou talvez porque tenha se revelado uma menina má. Arquétipos...
Ela era casada, gostava de ser, mas era ótimo não ser limitada, não limitar os símbolos era libertador. Deixar de ser um símbolo não era como morrer, era como a cada dia nascer, nascer infinitas vezes, nascer de infinitas formas. Adorava não ter forma e deixar livre para que quem a lesse a imaginasse, infinitas formas, até dela mesma, simplesmente como uma pessoa, em sua total nudez.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Talvez ... vestígios e mimos, talvez ...

Talvez por não estarem fisicamente juntos, compartilhando o dia-a-dia, as cotidianices, os finais de tarde e os espreguiçares matinais, talvez por esses pequenos detalhes desejados e negados, tenham arranjado um jeito de ficarem próximos, mesmo que distantes. E não é que deu certo. Ainda hoje, muitos anos depois, ainda é possível encontrar vestígios deles na vida um do outro. Pequenos presentes, mimos discretos e duradouros. Ela ao organizar seus CDs, achou alguns que nem se recordava ter, Madredeus estava lá, por causa da vocalista, do timbre, do nome, de Deus. Ele ao arrumar suas caixas de mudança encontrou a Corujinha da Arca de Noé, presente tardio. Se lembra também do Caetano, por duas vezes ela viu o show, ele não. Ela quis compartilhar com ele aquelas músicas, lhe deu o CD. Os livros eram capítulos a parte, ela queria que ele lesse todos que ela tinha lido, ele nunca leu nenhum. Ela lia, amava os livros que ele apresentou, até a biografia do Jung. E ela detesta biografias. Os filmes também eram compartilhados, nunca vistos juntos de forma tradicional, eram assistidos e compartilhados com o coração, com direito a interrupção no minuto sugerido com resenha e explicação pessoal. Impossível não guardar tudo isso, impossível não se lembrar ao se deparar com esses vestígios. Talvez por tudo isso ela fique tão triste por não ter ouvido um muito obrigado ao presenteá-lo com o fim do seu exílio. Com aquele ato aparentemente banal de saírem juntos depois de tanto tempo ajudando-o a fazer as pazes com sua terra natal e com seu passado. Ela sabe que esse tipo de ato deveria ser desapegado, sem a necessidade de reconhecimentos, mas ela, em toda sua imperfeição, ainda precisa desses mimos.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Carta do Exílio II

Queria que você soubesse que não estou mais na ilha, resolvi navegar por ai e acabei aportando em terras novas. Caminhei por alguns dias, até que cheguei ao pé de uma montanha, não resisti a ela, como poderia resistir? A partir de agora envie suas cartas para endereço novo que está no envelope. Falando nisso, sinto informar que suas cartas nunca chegaram. Uma pena palavras como as suas se perderem pelos mares, fica o consolo do sentimento sempre ter me alcançado, mesmo que em silêncio. Ainda bem que conservo comigo todas as cartas anteriores ao exílio, em ocasiões especiais ainda posso relê-las. Se você as tiver, faça o mesmo um dia, talvez em uma terça-feira nublada às 15 horas ou em um domingo de primavera. Seja Valente ao visitá-las e me mande sua impressão. Bom saber que as palavras ficam, mesmo quando os caminhos mudam.
Gosto tanto dos ares da montanha que pretendo ficar por aqui por mais algum tempo, tenho certeza que dessa vez, apesar da distância, suas palavras poderão me achar. Não deixe de tentar.
da sua doce Clarice.

P.S. notícias de quando cheguei a Ilha Desconhecida.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Sentir

Não dava mais para inventar, dessa vez tinha que ser de verdade, apesar de achar têneu o fio que separa a realidade do sonho, o concreto da inventividade. Ainda mais para mentes como a dela, tão treinadas para a inventividade, criatividade era com ela. Agora era diferente, precisava ser palpável, materializado, concretizado. Palavras duras, contrárias a sua essência. Ela era bruma, névoa, matéria dos sonhos, dos pensamentos. Contraditória, achava-se tão concreta como qualquer outra pessoa feita de matéria de gente. Andava, respirava, desejava. Por muito tempo achou que isso seria o sufuciente para transformá-la, mas não era. Precisava de mais. Pedra, cal, tijolo, cimento, areia. Não de seus castelos, não a que seus pés tocavam agora. Precisava de pele, toque, tato. Precisava sentir. Era exatamente isso que buscava.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Ritual

Queria um dia entender, captar. Queria um dia acordar, abrir bem os olhos, espreguiçar e sentir dentro de mim águas calmas. Queria me despedir dessa que me olha no espelho. Dizer adeus e simplesmente ir. Caminhar a esmo. Ao léo. Sem olhar para trás, sem desejar o que ficou, caminhar desapegando-se. Levando só o corpo, a alma e o coração.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Bênção!

Eclipse. Lua cheia. Estrelas no céu. Vaga-lumes na terra. Água brilhando. Dia maravilhoso. Céu de azul profundo. Celebração. Riso de criança. Fim do Dia Perfeito. Lua nascendo. Amarela. Enorme. Criança estranha, olha bola amarela surgindo no horizonte e pergunta: Como o sol está nascendo se o céu está cheio de estrelas???
Só consigo pensar em como somos abençoados!

terça-feira, 12 de agosto de 2008

O DOM

Será que ele realmente havia deixado de habitá-la?
Viveram por tanto tempo juntos que agora ao se perceber sozinha não sabia mais quem de fato era. Sabia de quem fora, de tudo que poderia ter feito por tê-lo com ela, e não fez. Restava a fraca convicção do que fez, construiu, realizou. Fragilidade era a palavra mais adequada. Adequada para ontem e para hoje. Qual seria a de amanhã?
Não havia se levantado ainda. Com que pés deveria tocar o chão frio? O coração bateu depressa, era o seu coração que batia, disso tinha certeza. Se não fosse assim, feito por ele, sabia que jamais seria. Ela jurou que estariam sempre juntos. Ela era o corpo, a alma. Ele todo o resto.
Respirou fundo. Levantou-se devagar.
Algo chamou sua atenção.
Ele dormia.
Estava ali.
O resto todo estava salvo.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Vírgula

Ela gostava da vírgula, costumava dizer que esse era o tempo exato, nem menos, nem mais. Achava poético responder quando questionada sobre a duração de algo. Ora, simples, o tempo da vírgula. Era como a minhoca, arejava, ventilava, ajudava a nutrir. Mas ultimamente andava indecisa, não conseguia se definir: vírgula ou reticências?

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Ponto e vírgula

Ela subestimou o poder do ponto final. Achou que poderia usá-lo a seu bel prazer. Enganou-se. Estava sentindo falta das palavras. Poucas vezes teve que sair a procurá-las, costumava ficar a sós esperando-as chegar. Algumas viam cedo para o café, outras preferiam o chá da tarde. Algumas, boêmias, só apareciam de madrugada. O importante é que elas sempre viam. De um dia para outro deixaram de vir. No início ela não se preocupou, afinal eram palavras-livres, tinham todo o direito de não vir. Os dias passaram e ela começou a estranhar, sentia saudades de suas companheiras, o bule de chá - coitado - esquecido no canto da sala. Até que não aguentou mais e resolveu chamá-las. Silêncio. Saiu para verificar, procurou embaixo, do lado, atrás.
Ouviu um ruído, burburinho, vozes abafadas. Estranhou. Seguiu o som, levava ao ponto final. Olhou espantada, muitas palavras paradas, estacionadas, aguardavam ali.
O que aconteceu? Por favor, uma de cada vez, não consigo entender.
Uma tomou a frente, nessas horas sempre aparece um líder. Não conseguimos passar, ele não deixa. Ela compreendeu. Sussurou no ouvido do ponto final, deu a ele uns dias de férias. Chamou o ponto e vírgula, ele com certeza ajudaria;